|
GUSTAVO CABRAL , IMUNOLOGISTA BRASILEIRO |
O imunologista Gustavo Cabral cresceu vendendo
frutas na feira de Tucano, interior do sertão baiano. Natural de Creguenhem,
povoado na zona rural da cidade, ele só concluiu o ensino fundamental aos 21
anos. Hoje, aos 38, é responsável por chefiar a pesquisa para desenvolver
uma vacina contra o novo coronavírus no Instituto do Coração
(Incor) da Faculdade de Medicina da USP. Depois de juntar dinheiro por três
anos, Cabral conseguiu se mudar para a cidade de Senhor do Bonfim (BA) para
graduar-se em ciências biológicas pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb),
que abriu as portas para um mestrado em imunologia na Universidade Federal da
Bahia (UFBA), em Salvador, um doutorado na USP e um pós-doutorado em Oxford, na
Inglaterra, e em Berna, na Suíça, onde estudou imunologia aplicada à vacina. Ciência tenta
responder ao maior enigma sobre o coronavírus: a imunidade
Foi de lá que ele voltou há quatro meses, a convite
de Jorge Kalil, referência em pesquisas de vacinas, para desenvolver sua
pesquisa no Incor. Quando viu as primeiras notícias sobre o novo coronavírus,
Cabral não imaginava que precisaria adaptar sua metodologia de trabalho —focada
em chikungunya e
estreptococos— para desenvolver uma vacina para a covid-19. “À princípio,
imaginei que o vírus se concentraria na China, já que existe um sistema de
vigilância global. Foi o que aconteceu com o ebola, por exemplo, que não se espalhou. Quando, em fevereiro,
às vésperas do Carnaval, o vírus continuava se expandido, pensei ‘agora,
ferrou”, diz ele, em bom baianês.
Agora, Cabral e sua equipe trabalham
incessantemente enquanto a sociedade espera uma bala de prata contra a pandemia. Ao mesmo tempo, ele reflete —e critica— as políticas
de investimento em educação, ciência e tecnologia. “Sabe quando há interesse em
investir em ciência e tecnologia para criar balas mágicas? Quando afeta países
e classes abastados. O zika vírus,
por exemplo, é conhecido desde a década de 1950, mas nunca tinha sido muito
estudado. Despertou interesse público quando afetou grandes países
[entre 2014 e 2015]. E é que ciência é uma coisa muito cara, quem diz que se
faz ciência apenas com boa gestão não sabe do que está falando”, afirma em
entrevista ao EL PAÍS.
Ainda durante a graduação, o imunologista montou um
projeto de pesquisa para trabalhar com comunidades quilombolas e doenças parasitárias, investigando
como os fatores socioambientais impactavam a evolução desses problemas. A
milhares de quilômetros do sertão, é ainda nas pessoas mais vulneráveis que ele
pensa enquanto desenvolve seu trabalho. “Se o coronavírus causou
tanto estrago em países de primeiro mundo, com melhores estruturas sociais e
econômicas, o que vai fazer quando adentrar fortemente as comunidades mais
vulneráveis do Brasil, os interiores, as favelas? Quando vejo pessoas na rua, penso nesses mais
vulneráveis e me pergunto se elas não têm empatia”, diz.
Pergunta. Como
funcionam as vacinas contra um vírus?
Resposta. O objetivo da
vacina é fazer com o que o vírus seja incapaz de induzir a doença na pessoa. É
o que acontece, por exemplo, nas vacinas contra a gripe. Podemos utilizar o
vírus inteiro, apenas um pedaço dele, um pedaço do DNA ou um pedaço da proteína
desse vírus para colocá-lo no corpo e fazer com que esse corpo reconheça como
algo estranho e desencadeie uma resposta imunológica. Quando nosso organismo
ataca um corpo estranho, ele gera uma memória imunológica, que faz com que
criemos anticorpos contra esses vírus. É o que fazemos com as vacinas. Para um
vírus infectar uma célula, ele precisa de algumas proteínas para acoplar-se a
ela. Na vacina, podemos usar uma parte dessa proteína e induzir o sistema
imunológico a responder só a esse pedaço, mas ele já não vai conseguir entrar
na célula.
P. Qual a
diferença entre o projeto do Incor e as pesquisas feitas em outros países?
R. Antes de
responder, é preciso dizer que cada país ou empresa tem seus próprios
interesses. Por exemplo, se uma empresa tem a patente de uma metodologia, não
importa que haja outra melhor, ela vai investir totalmente naquela que vai
gerar lucro. Aqui no Brasil já temos uma certa folga em relação a isso. No
Incor, trabalhamos sem essa pressão. Quando fui chamado para liderar o projeto,
a primeira coisa que expliquei foi que nossa prioridade seria garantir uma
vacina segura, já que não sabemos quase nada desse novo coronavírus. Vamos
privilegiar a segurança e a eficiência da vacina em vez da rapidez. Decidimos
não utilizar o material genético do vírus, porque não temos ainda informações
suficientes sobre ele. Utilizamos as metodologias que aprendi nos últimos cinco
anos na Inglaterra e na Suíça: em vez de usar o material genético do
coronavírus, trabalhamos com partículas dele que são responsáveis por entrar nas
células humanas. São as coroazinhas do vírus, chamadas de “proteína de spike”.
Juntamos esses fragmentos com partículas sintéticas, parecidas com vírus, mas
sem material genético, ou seja, ocos, para impedir multiplicação. São os VLPs
[da sigla em inglês Virus Like Particles], um emaranhado de proteínas. Como os
VLPs imitam um vírus, o sistema imunológico estranha e reage tanto a essas
partículas quanto ao pedaço do coronavírus colocado nelas.
P. Em que fase
de desenvolvimento vocês estão?
R. Podemos considerar
que estamos começando, por causa da urgência da pandemia. Mas estamos muito
adiantados no quesito da produção intelectual, com a produção dos VLTs e das
proteínas, a formulação da vacina já está bem adiantada. Os trabalhos in
vitro também estão adiantados e já estamos partindo para os testes pré-clínicos
em modelos animais nas próximas semanas. Com a corrida para ver quem cria a
vacina primeiro, alguns países querem pular da experimentação in vitro direto
para seres humanos, mas isso é uma loucura. Mesmo com todo o arcabouço teórico,
o corpo humano é muito complexo, sempre vai nos mostrar alguma surpresa. É
imprescindível testar antes em animais.
P. Se a pesquisa
avançou tanto em pouco tempo, porque se fala em até dois anos para que a vacina
chegue ao mercado?
R. Quando
se desenvolve uma vacina, é possível adiantar a parte teórica com vários
virologistas, infectologistas e imunologistas. Essa parte técnica é rápida.
Mas, quando partimos para a experimentação em seres vivos, a coisa muda.
Preciso pelo menos de 15 dias para avaliar como o corpo do animal vai reagir.
Analisamos essa reação e vamos ajustando, de certa forma, a vacina até que ela
seja totalmente eficiente. Nisso vão um mês ou dois. Com os resultados, vamos
experimentando em outros modelos animais até que eles neutralizem o vírus a um
ponto em que seja seguro testar em seres humanos. Depois disso, vêm os estudos
sobre a toxicidade da vacina. Teremos que desenvolver uma enorme bateria de
informações para justificar o encaminhamento da vacina para os órgãos de
análise específicos. Aí entra a questão burocrática, que, devido à urgência,
pode até correr rápido. Mas a biologia, infelizmente, nós não podemos apressar.
Para saber se o que deu certo no animal vai funcionar em seres humanos, fazemos
os estudos clínicos, em que pegamos uma pequena quantidade da vacina para
testar se há uma resposta imunológica. Em caso positivo, testamos uma
quantidade maior até que o vírus seja neutralizado.
P. Apesar das
diferentes abordagens em cada país, a comunidade científica tem trocado
informações sobre essas pesquisas?
R. Para mim,
tanto faz se serei eu ou outro cientista que vai criar primeiro a vacina, eu
quero mais é que ela seja desenvolvida. Mas, como pesquisador, e falando de
forma realista, jamais trocarei informações com uma empresa que não invista
financeiramente no projeto. Entre cientistas, sim, conversamos muito. Nossa
equipe, por exemplo, trabalha muito com a Fiocruz de Minas Gerais. É verdade
que nós, pesquisadores, temos o ego grande, mas, neste caso, estamos falando de
salvar vidas humanas, então trocamos muitas informações.
P. Uma vacina
desenvolvida por um centro público de pesquisa, como o Incor, vai de encontro
aos interesses farmacêuticos?
R. Eu, pessoalmente,
não estou nem aí se a pesquisa vai de encontro a qualquer empresa. O que
queremos é desenvolver uma vacina extremamente eficaz e segura, que seja
publicada e produzida.
R. A gente teve
um pico de investimento em ciência e tecnologia em 2004. Em 2014, o dinheiro
público aplicado no setor foi para níveis menores que 2004. E perder
investimento em ciência e tecnologia é perder também capacidade de vigilância
em saúde. Tivemos um recente exemplo disso, com a crise do zika vírus. Se
tivéssemos aprendido a lição naquele momento, estaríamos muito mais preparados
para enfrentar o coronavírus agora. Cortar investimento é algo tão obtuso, que
as pessoas falam da importância econômica de economizar verba pública sem
lembrar que investimento em ciência, tecnologia e inovação significa economia
permanente. Se você produz conhecimento, a gente para de importar insumos,
produz internamente e ainda vamos importar. É o que acontece, por exemplo, com
o soro antiofídico, que o Brasil exporta para toda a América Latina. Então,
investir em ciência e tecnologia, sobretudo neste momento, é estratégia
econômica e de saúde pública.
Outra coisa é que eu, por exemplo, se não tivesse
bolsa de estudo, não teria condições de parar de trabalhar e estudar e fazer
pesquisa. Ou seja, se a gente para de investir, perdemos o que temos de mais
precioso, o talento humano.
P. Além da
importância desse investimento, que outras lições o Brasil poderia ter
aprendido com a crise do zika vírus?
R. Países têm
capacidade de se recuperar economicamente até de uma guerra, mas não há
recuperação de vida. Os brasileiros que foram afetados, direta e indiretamente
com a epidemia de zika viverão para sempre com essas sequelas. Uma coisa que aquela
crise evidenciou foi a importância também da responsabilidade social, que,
naquele momento, tinha a ver com o combate ao Aedes aegypti. Hoje, tem a ver com a quarentena: não é responsabilidade
exclusiva das autoridades determinar que as pessoas fiquem em casa, essa é uma
obrigação de todos.
Há uma responsabilidade também de pressão social.
Depois que passou o pico do zika vírus, todo o investimento na produção de uma
vacina contra ele foi cortado. A sociedade precisa entrar nesse jogo, porque
daqui a menos de um ano a pandemia de coronavírus não estará tão forte como
agora, a vacina estará prestes a ser testada em humanos e, se não houver
pressão popular e política, o mesmo vai acontecer, perderemos o investimento.
P. E quais
aprendizados vão ficar depois da pandemia?
R. O melhor
aprendizado é que ciência e sociedade têm que andar juntas. Sem isso,
continuaremos dependendo só de opiniões políticas para decidir se tomar cloroquina contra um vírus ou não, por
exemplo. Isso não se faz com base em opiniões, diz respeito a uma questão
médica-científica. Se ficarmos no jogo político, todos vamos perder.